– por Vitor Frederico Kümpel e Fernando Keutenedjian Mady
No que toca aos efeitos substantivos do registro, o sistema de mutação jurídica no Brasil, em regra, é o do título e modo, isto é, a causa da mutação jurídico-real está no próprio título, que será o negócio levado a registro para que ocorra a transferência do direito real.
O confeccionador do título que é levado a registro, por natureza, é o Tabelião de Notas, desde a Idade Média, a quem a lei reconhece como probos e verdadeiros e atribui-lhes o poder de juridicizar a vontade das partes com a qualidade de título a ingressar no sistema registral.
Nessse sentido, enquanto a atividade notarial instrumentaliza títulos, a atividade registral é responsável por qualifica-los e registra-los. Portanto, não é da essência do registrador formalizar títulos, traduzindo-se em função atípica, aferível também nos procedimentos extrajudiciais de usucapião, previstos no art. 216-A da LRP.[1] Ressalte-se assim que lavrar, qualificar e assentar, não é adequado ao registrador.
O regime jurídico dos notários e registradores é regulado pela lei 8.935/1994. Tal lei estabelece aos registradores a função de qualificação, registro, averbação e anotação em Livros Públicos (LRP, arts. 3º e 7º-A). Assim, a fé registral gera uma crença na verdade do documento extraído do registro, de que as informações ali contidas são precisas e espelham a verdade dos títulos que a determinaram.[2]
De outro lado, aos notários foi atribuída a atividade de formalizar juridicamente a vontade das partes; e intervir nos atos e negócios jurídicos que devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo. Logo, a atividade notarial é de meio, cujo interesse é indiretamente difuso e diretamente particular; ao revés, a atividade registral é de interesse diretamente difuso e indiretamente particular.
A escritura pública é o ato por excelência, típico e privativo do tabelião de notas, cuja materialização da vontade das partes gera eficácia tripla, isto é, confere publicidade e segurança jurídica, faz prova plena pré-constituída e solidifica a formação legal dos atos e guarda de documentos.
A atividade prevista desde as Ordenações do Reino de Portugal e Algarves, se manteve na Consolidação de Leis Civis, de Augusto Teixeira de Freitas, em seu art. 386, “As escripturas serão lavradas nos Livros de Notas, e não em papel avulso; e para sua solenidade, e validade devem conter.”.[3] No Código Civil de 1916 (art. 134), bem como no Codex em vigor (art. 215), a essência é a mesma.
A lei 14.382/2022 modificou a sistemática de formalização de uniões estáveis perante os serviços notariais e de registro drasticamente, refletidas na Lei de Registros Públicos, em seus arts. 70-A e 94-A. Dando seguimento na temática da união estável, com base no Provimento nº 141/2023, o qual trouxe alterações no Provimento 37/2014, ambos da E. Corregedoria Nacional do Conselho Nacional de Justiça – CN-CNJ -, passa-se ao exame da natureza do termo declaratório de união estável.
O vocábulo termo é plurívoco. Corresponde a inúmeras acepções, porém, como bem esclarece Maria Helena Diniz, para o Direito Privado, é o instrumento no qual certos atos processuais são formalizados; ou a declaração ou o registro, feito pela autoridade competente, nos autos de algum ato que deva ficar indelével.[4]
O Provimento nº 37/2014 do CNJ determinava que seriam títulos hábeis para registro ou averbação no Livro E do registro civil de pessoas naturais – relativos à união estável – os seguintes: i. as sentenças declaratórias do reconhecimento e de dissolução da união estável; ii. as escrituras públicas declaratórias de seu reconhecimento; e iii. as escrituras públicas declaratórias de dissolução da união estável nos termos do art. 733 do Código de Processo Civil.
A partir da atualização do Provimento nº 37/2014 do CNJ, os termos declaratórios de reconhecimento e de dissolução de união estável foram incluídos no rol do art. 1º, §3º, previsto na referida norma administrativa, por força do art. 94-A, caput, da lei6.015/1973, incluído pela lei 14.382/2022. Portanto, a lei 14.382/2022 foi quem criou e inseriu o termo declaratório como título, de forma que o Provimento nº 141/2023 apenas deu contornos para um título já existente. Ressalte-se que a lei criou um título complexo, mas que deveria ser simples, isto é, um mero termo singelo, a ser declarado e assentado no Livro E. Qualquer outro contorno diferente disso, isto é, de maior complexidade, deveria ser realizado mediante sentença ou escritura pública.
A união estável é a relação de fato, configurada na convivência pública, contínua e duradoura, a qual objetiva uma entidade familiar (CC, art. 1.723). O CPC, em seu art. 405, prescreve que o documento público faz prova não apenas da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o chefe de secretaria, o tabelião ou o servidor declarar que ocorreram em sua presença. A eficácia, deste modo, é probatória da formação e dos fatos narrados perante o oficial de registro do relacionamento entre duas pessoas.[5] Não tem, contudo, a eficácia perante terceiros, como se demonstrou em artigo da série anterior.
Conforme mencionado, o art. 94-A, caput da Lei de Registros Públicos não delimita os contornos deste termo declaratório, tampouco se seria aplicável às dissoluções de união estável. O Código de Processo Civil, em seu art. 733, permite a extinção consensual de união estável mediante escritura pública somente nos casos em haja consensualidade na decisão dos companheiros, inexistência de filhos menores ou nascituros. Exige também, para tanto, a assistência de um advogado ou defensor público.
Portanto, o Provimento nº 141/2023 surgiu com uma série de problemas, como a independência do termo em relação ao registro; e a concessão de poder ao registrador para trabalhar todos os regimes, além da questão da certificação eletrônica. Nos termos do artigo 70, §6º da lei 6.015/1973, não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável a data do início ou o período de duração desta, salvo no caso de prévio procedimento de certificação eletrônica de união estável realizado perante oficial de registro civil.
Nesse sentido, a certificação eletrônica é utilizada na hipótese de conversão da União Estável em casamento, de forma que seria responsabilidade do registrador a mera aferição de existir no sistema eletrônico uma União Estável entre as mesmas partes e por ocasião da conversão, constar a referida data na conversão.
O procedimento para a formalização do termo declaratório, inicia-se com a rogação dos companheiros perante qualquer oficial de registro civil das pessoas naturais (LRP, art. 13), o qual deverá colher a declaração conjunta, expressa, única e voluntária (Prov. 37/2014 da CN-CNJ, art. 1ª-A e §§). Isto porque, é requisito a inexistência de termo anterior, o que poderá ser verificado pelo registrador na Central de Informações de Registro Civil – CRC. O termo declaratório deve ficar arquivado na serventia, preferencialmente na forma eletrônica, em classificador próprio e, em ato posterior e imediato, inserido na plataforma da CRC (Prov. 37/2014, art. 1º-A, §§ 1º, 2º e 5º).
Uma das principais características do Termo é a sua informalidade, isto é, sua formalização é facultativa. Tendo em vista que o Código Civil estabeleceu a união estável como uma relação duradoura, o oficial de registro deverá, com base no princípio da isonomia no tratamento dos interessados e na razoabilidade, o critério adotado deverá ser igual para todas as declarações formalizadas. (CF, arts. 5º, caput e 37, caput).
Importa observar que o Termo Declaratório não poderia ser de dissolução, na medida em que o Código de Processo Civil de 2015 não lhe deu esse poder, muito menos a Lei nº 14.382/2022; também não poderia envolver imóveis acima de trinta salários mínimos e trabalhar qualquer questão que não fosse ope legis. Ademais, não poderia ser autônomo, isto é, se desvincular do registro, na medida em que o artigo 94-A da Lei nº 6.015/1973 pressupõe que o Termo é confeccionado pelo registrador e assentado imediatamente, indicando, assim, que está atrelado a um procedimento para o ato de registro.
Outra questão que merece análise é se o termo declaratório seria título hábil ao registro no Livro 3 – Auxiliar do Registro de Imóveis das disposições patrimoniais estabelecidas pelos companheiros (CC, art. 1.657 do CC, c.c. o Provimento 37/2014 do CN-CNJ, art. 9ª-D, § 6º). É possível dizer que o termo em si não é título hábil, mas sim a certidão do Livro E decorrente do termo, desde que com contornos muito básicos.
Quanto aos emolumentos, eles serão pagos no valor de 50% de procedimentos de habilitação para o casamento (Prov. 37/2014 do CN-CNJ, § 6º, inc. I) e será emitida a certidão do termo, autenticada pelo oficial, eficaz como o seu original (CPC, art. 425, III). Para a dissolução de união estável, se envolver partilha de bens, o termo declaratório corresponderá ao valor dos emolumentos previstos para a escritura pública do mesmo ato jurídico, estabelecido em tabela própria.
Como bem alertou o E. Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Luís Felipe Salomão, em seu voto, no Pedido de Providências nº 0004621-98.2022.200.0000, “parece evidente que a escritura pública declaratória e o termo declaratório de união estável são instrumentos distintos.”, cabe às partes decidirem qual dos instrumentos consubstanciará a existência de relação entre companheiros ou a sua dissolução, cujos efeitos serão sentidos no futuro.
O Termo Declaratório, por lei, deveria ser um título registral, vinculado, facultativo e gerar uma certidão do assento, mas nunca do termo. Pelo Provimento nº 141/2023, se tornou um título registral autônomo (não vinculado), aberto (podendo ser confeccionado em qualquer cartório), com status superior à Escritura Pública, e fazendo prova plena, podendo fixar regime e dissolução com presença de advogado, além de ter convertido o registrador civil em tabelião de Notas, o que acabou por subverter o sistema.
Sejam Felizes!
Até o próximo registralhas!
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[1] Tema já abordado em Usucapião Extrajudicial; (F.K. Mady; e S. L. Ferreira da Rocha. In: Direito Ambiental e Urbanístico v. 1 (ago./set. 2005)-.- Porto Alegre: LexMagister, 2005- Bimestral v. 91 (ago./set. 2020). [2] V. F. Kümpel; e C. M. Ferrari. Tratado de direito notarial e registral – vol. 3, 2ª ed., São Paulo, YK Editora, 2022, p. 114 a 120 [3] A. Teixeira de Freitas, Consolidação das Leis Civis, 3ª ed. aum., Rio de Janeiro: Livreiro Edictor do Instituto Histórico, 1876, p. 488 [4] Dicionário jurídico – Q – Z, 3ª ed. rev., atual, e aumentada, São Paulo, Ed. Saraiva, 2008, p. 626-627. [5] O Supremo Tribunal Federal decidiu no Recurso Extraordinário 1.045.273/SE, cujo Tema de Repercussão Geral nº 529, versou sobre o reconhecimento jurídico de duas uniões estáveis concomitantes, com a atribuição de efeitos previdenciários nas duas relações e o respectivo rateio. Com a seguinte tese se firmou, em 02 de agosto de 2021, que: “É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável”.Fonte: Migalhas